NATURISTICA

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A história da cannabis medicinal: de proibida a terapêutica

Como uma planta tão benéfica a saúde se tornou um tabu e porque isso está (finalmente) mudando.

Cannabis não era proibida? O que aconteceu?

A cannabis é uma planta – como qualquer outra planta inocente que você usa para fazer um chá ou um emplastro caseiro, por exemplo –  que tem sido utilizada pela humanidade há milênios. Desde as primeiras civilizações até os tempos modernos, suas propriedades medicinais, recreativas e industriais têm sido exploradas de diversas formas. No entanto, a jornada da cannabis medicinal é marcada por uma história complexa de proibição, estigmatização e, mais recentemente, uma renovada aceitação e revalorização científica. 

Venha entender melhor essa trajetória, desde os primeiros registros do uso de cannabis, passando pelo auge de sua proibição, até sua recente transformação em uma terapia legalmente reconhecida. Afinal, o conhecimento é a melhor forma de vencer o preconceito.

Os primeiros usos da planta

A utilização de cannabis remonta a mais de 5.000 anos, quando a planta foi documentada por culturas antigas da Ásia, como os chineses e os indianos. Na China, por exemplo, o imperador Shen Nong, uma figura mítica da medicina tradicional chinesa, teria recomendado o uso de cannabis como remédio para uma variedade de condições, como dores, inflamações, e insônia. A planta também era empregada em rituais espirituais e de cura.

Já na Índia, a cannabis era considerada uma planta sagrada. O seu uso medicinal e religioso foi registrado em textos antigos, como o Ayurveda, que a utilizava como um remédio para diversas condições, incluindo problemas digestivos, febre e como um auxiliar no alívio de dores. A planta também já era consumida na forma de bebidas ritualísticas, como o bhang, uma mistura de cannabis e leite, utilizada para fins religiosos e espirituais.

Cannabis na Antiguidade

À medida que as civilizações antigas se expandiram, o uso de cannabis medicinal se espalhou por outras culturas. Egípcios, gregos e romanos também utilizavam a planta para tratar dores, inflamações e outros problemas de saúde. O famoso médico grego Dioscórides (40-90 d.C.) fez referência ao uso da planta como um remédio para aliviar dores nas articulações e outras doenças. Já no Império Romano, Plínio, o Velho, a mencionava em sua obra “História Natural”, destacando suas qualidades terapêuticas, principalmente como tratamento para feridas.

A Idade Média e o uso de cannabis

Os anos se passaram e, na Idade Média, a cannabis continuou a ser usada na medicina tradicional de várias culturas ao redor do mundo. No entanto, o uso medicinal da planta começou a ser ofuscado por crenças supersticiosas e associadas a práticas de magia e feitiçaria, especialmente na Europa, onde a igreja católica e a Inquisição passaram a associar certas substâncias, como a cannabis, ao ocultismo e à bruxaria. Mesmo assim, na Pérsia e em outras partes do Oriente, a planta continuava sendo amplamente usada.

Nesse período, o uso medicinal da planta desapareceu parcialmente, à medida que a Igreja e os governantes reforçavam a ideia de que o consumo de qualquer substância supostamente “alucinógena” era imoral e contra a fé cristã, com o propósito de fortalecer suas próprias ideias e oprimir outras crenças e culturas. 

Com o passar dos séculos, o uso da cannabis se manteve em algumas partes do mundo, mas a repressão e a criminalização da planta tomaram uma nova forma. À medida que os ideais do ocidente se disseminavam, a cannabis – assim como inúmeros outros aspectos de culturas tradicionais – foram sendo marginalizados e condenados. 

Foi aqui que se iniciou uma longa história de estigmatização e preconceitos, privando as pessoas dos inúmeros benefícios dessa planta que já foi considerada sagrada por alguns povos. Esse retrocesso foi pautado, principalmente, por questões políticas, econômicas e interesses de grandes grupos, e, em nenhum momento, por descobertas científicas que revelassem malefícios e perigos de tratamentos com a cannabis

A Proibição: o início do estigma

No final do século XIX e início do século XX, a planta que então já era marcada com certo preconceito, começou a ser alvo de uma campanha de demonização, especialmente nos Estados Unidos. O uso recreativo de cannabis foi fortemente associado à nova onda de imigração de mexicanos, e isso acabou alimentando um discurso racista e xenófobo. A planta foi associada a grupos marginalizados, como imigrantes mexicanos e afro-americanos, e a sua utilização passou a ser vista não apenas como um problema de saúde pública, mas como uma ameaça social. Apesar de o uso medicinal e para outros fins que não o recreativo ter menos força dentre as minorias, seu uso ainda era prestigiado e comum, e os Estados Unidos usaram a cannabis como um bode expiatório para estigmatizar certos grupos sociais e raciais, criando uma narrativa em torno da planta como perigosa e associada a comportamentos criminosos.

Isso culminou na proibição do uso de cannabis, que se consolidou nos EUA com a Lei de 1937, conhecida como Lei da Taxação da Marihuana, que estabelecia um imposto impagável sobre a planta – chamada de “droga”. Fica claro que a proibição da cannabis não veio para um bem maior, mas sim de um lugar de preconceito e interesses relacionados a aumento de poder político e econômico

O movimento de criminalização não ficou restrito aos EUA, mas se espalhou globalmente, em grande parte devido à influência política e cultural desse país durante o século XX. A ONU, pressionada pelos Estados Unidos, passou a incluir a cannabis em listas de substâncias proibidas, o que ajudou a consolidar a imagem negativa da planta ao redor do mundo. A criminalização da cannabis e a ideia de que ela estava diretamente associada a comportamentos desviantes, como a criminalidade e a violência, espalhou-se para outras partes do mundo, especialmente para países da América Latina e da África, onde ela também começou a ser vista com desconfiança e como algo perigoso para a sociedade.

Percebe a relação? Grupos intencionalmente marginalizados, e portanto mais suscetíveis à criminalidade, culturalmente mantinham a cannabis em seu dia a dia, e portanto foi relativamente fácil à época construir uma narrativa de relação entre CANNABIS e CRIME. 

O papel do proibicionismo na história da cannabis

A proibição da cannabis não apenas ajudou a alimentar estigmas e preconceitos, mas também tornou ainda mais difícil o debate sobre os potenciais usos medicinais da planta. A falta de informação científica e a demonização da planta impediram que ela fosse estudada adequadamente para fins terapêuticos, restringindo suas possibilidades de uso no tratamento de diversas condições de saúde.

Esse preconceito enraizado nas décadas de estigmatização levou a uma grande lacuna de conhecimento sobre os benefícios da cannabis. Mesmo com a crescente base de estudos sobre os efeitos terapêuticos do CBD, do THC, e de outros compostos derivados da planta, e a evidência de que a cannabis pode ser eficaz no tratamento de condições como dor crônica, epilepsia, ansiedade, autismo dentre dezenas de outras condições, muitos ainda lutam para superar o estigma associado ao seu uso. A revolução na aceitação da cannabis medicinal é, portanto, uma jornada que passa por um processo de desmistificação e educação pública, em que a comunidade científica tem um papel fundamental.

O renascimento 

Nos anos 1990, com o avanço das pesquisas científicas, movimentos de legalização e ativismo, mudanças culturais e midiáticas e a com a crescente conscientização sobre os benefícios da medicina alternativa, a cannabis começou a ser novamente considerada como uma opção terapêutica. Em 1996, o estado da Califórnia foi o primeiro a legalizar o uso medicinal nos Estados Unidos, abrindo caminho para outros estados adotarem políticas similares. Isso marcou o início de uma nova era de aceitação.

A partir daí, o interesse cresceu significativamente, com vários estudos sendo conduzidos para entender os benefícios dos diversos compostos da planta, como CBD (canabidiol), THC (tetraiidrocanabidiol), CBN, CBG, etc. Cientistas inclusive começaram a compreender melhor como a cannabis interage com o sistema endocanabinoide, uma rede de receptores no corpo humano que regula várias funções fisiológicas, como dor, humor, sono e apetite.

A legalização e a nova era

Nos últimos anos, vários países ao redor do mundo têm avançado na legalização da cannabis medicinal, com mais de 40 países permitindo seu uso para tratar diversas condições de saúde. Canadá, Uruguai, Alemanha e uma série de estados nos EUA têm adotado a legalização, e cada vez mais estudos científicos indicam os benefícios terapêuticos da planta. A crescente aceitação social e a pressão da sociedade civil estão contribuindo para que mais países sigam o exemplo da legalização.

O uso medicinal da cannabis está ganhando mais credibilidade científica e sendo cada vez mais integrado aos tratamentos convencionais. Organizações internacionais, como a Organização Mundial da Saúde (OMS), têm reconhecido os benefícios especificamente do CBD em diversas condições médicas, especialmente no tratamento de dor crônica, ansiedade e epilepsia. Isso abre um campo promissor para o uso de cannabis como terapia complementar, especialmente em doenças para as quais a medicina convencional ainda não tem respostas eficazes.

De terapêutica à proibida, de proibida à terapêutica

O caminho da cannabis medicinal, de proibida a terapêutica, é uma jornada que reflete a evolução da medicina, da ciência e da sociedade. Com base no conhecimento científico e no entendimento de suas propriedades medicinais, a cannabis está se tornando uma opção viável e segura para o tratamento de diversas condições de saúde, marcando o fim de décadas de estigma e a abertura para uma nova era na medicina.

A Naturistica, em compromisso com a medicina natural e integrativa, acredita que a cannabis tem um papel fundamental no futuro dos tratamentos de saúde, trabalhando lado a lado com outras terapias alternativas para proporcionar um cuidado mais completo e personalizado para cada paciente. A história da cannabis medicinal é, sem dúvida, uma história de superação e renascimento, e o futuro promete ser cada vez mais promissor.

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